Luíza era uma empregada que tínhamos lá na chácara, durante parte de minha infância e adolescência. Mulher de quarenta e poucos anos, uma típica gaúcha do interior do interior do Estado, nascida, criada e constituída daquilo que era considerado por seus afins o elemento essencial à formação de um indivíduo na face da terra: comida! - suficiente pra fazer vingar e aprender a ‘se virar’, [sobre]vivendo. De certo que foi constituída de algum afeto também, não só pela forma que a nós tratava, mas também pela prole de incontáveis filhos a visitavam de tempos em tempos, o que me faz supor soube transmitir o afeto recebido de seus pais. Luíza tinha uma voz máscula e retraída, em perfeita adequação à sua espécie de timidez - talvez fruto da sequela física que delineava um rosto dotado de um olho só. Mas nem por isso nos privava de suas risadas. Via-se riso por todo aquele corpo. É que quando ria, fazia correr uma mão à boca, como se o riso tivesse de ser escondido, como se fosse pecado zoar, e que gargalhar representasse se dar ao ‘desfrute’, ainda que não se soubesse do quê. A outra [mão], enquanto ria, rasgava o espaço, bailava solta ao redor daquele corpo de biotipo em forma de maçã. Seu corpo ria, ria inteiro, pois era o que se via quando a barriga, protuberante e mole, por ter sido criadouro de tantos rebentos, balançava-se toda a cada gracejo que se fizesse com ela ou ela conosco. Luíza tinha todos os filhos criados, o que representava tê-los entregue à sorte do mundo; salvo a caçula, que reproduzia a timidez da mãe e outras formas e trejeitos seus, que mais lembrava um caso de espelhamento. A menina, para a mãe, se chamava ‘Sirvigina’, ainda que Sílvia Regina fosse seu nome de registro civil, e ainda que ‘sirvigina’ representasse o retrato de seus limites culturais - mas não menos gente que aqueles que classificam as gentes como sub ou sobre-humanos. Hoje um amigo me fez lembrar de Luíza, e com isto pensar na sorte de ter conhecido tantos mundos no microcosmos, porém, para mim, gigantesco universo de possibilidades e observações, em que cresci. Luíza fez lembrar que amanhã, mais uma vez, vou agradecer a meus pais, por tudo.
Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
Essa intimidade perfeita com o silêncio
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo
- Perdoai-os! porque eles não têm culpa de ter nascido...
Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo
Essa mão que tateia antes de ter, esse medo
De ferir tocando, essa forte mão de homem
Cheia de mansidão para com tudo quanto existe.
Resta essa imobilidade, essa economia de gestos
Essa inércia cada vez maior diante do Infinito
Essa gagueira infantil de quem quer balbuciar o inexprimível
Essa irredutível recusa à poesia não vivida.
Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento
Da matéria em repouso, essa angústia da simultaneidade
Do tempo, essa lenta decomposição poética
Em busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinicius.
Resta esse coração queimando como um círio
Numa catedral em ruínas, essa tristeza
Diante do cotidiano; ou essa súbita alegria
Ao ouvir passos na noite que se perdem sem memória.
Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera segue em face da injustiça do mal-entendido
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa
Piedade de sua inútil poesia e sua força inútil.
Resta esse sentimento da infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem para comprometer-se sem necessidade.
Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser
E ao mesmo tempo esse desejo de servir, essa
Contemporaneidade com o amanhã dos que não têm ontem nem hoje.
Resta essa faculdade incoercível de sonhar
De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la tal como é, e essa visão
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante
E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.
Resta essa obstinação em não fugir do labirinto
Na busca desesperada de uma porta quem sabe inexistente
E essa coragem indizível diante do grande medo
E ao mesmo tempo esse terrível medo de renascer dentro da treva.
Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem história
Resta essa pobreza intrínseca, esse orgullho, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do seu reino.
Resta essa fidelidade à mulher e ao seu tormento
Esse abandono sem remissão à sua voragem insaciável
Resta esse eterno morrer na cruz de seus braços
E esse eterno ressuscitar para ser recrucificado.
Resta esse diálogo cotidiano com a morte, esse fascínio
Pelo momento a vir, quando, emocionada
Ela virá me abrir a porta como uma velha amante
Sem saber que é a minha mais nova namorada.
Passar o sinal vermelho, vidas em risco, pontos numa carteira e desfalque na outra, melhor, não. Usar drogas, ilícito penal, nutriente da criminalidade, risco de encontrar com a minha droga, sequelas físicas e psíquicas, melhor, não. Caminhar sozinha à noite, tensão constante, dar sorte ao azar, melhor, não. Furar a fila no banco, instalar TV pirata, adquirir ingresso de cambista, embolsar o troco a maior, omissão frente a irregularidades éticas e legais, melhor, não. Entrar em estado de carência física e afetiva, risco de encantamento pelo primeiro diferente inadequado com que cruze, melhor, não. Dar de cara com fantasmas do passado, ceder espaço às memórias escondidas, sentir que o trem das onze ja passou, sem ter amanhã, melhor,
sim,
sem talvez.
Lançar olhares críticos, conceder chance a outras verdades, duvidar de todas elas, empreender novos caminhos, construindo trechos que sugiram desafios, melhor seguir, sim, dizendo sims à proposta de constante reinvenção - com todas as reservas aos nãos e quaisquer talvez.
Sem querer sugerir legislação sobre as questões relacionais humanas, se existisse um código ético das relações conjugais, o artigo 1º poderia ser: nas relações de afeto não há garantias.
Indo além, algum outro artigo poderia versar sobre os desdobramentos da cruel e hipócrita monogamia exigida dos pares, pela completa dissonância à natureza [física] humana.
Cruel mesmo, no caso, talvez seja abordar este tema abertamente, e lembrar da sua origem na cultura patrimonialista, decretando a obrigatória monogamia [o mesmo vale ao celibato religioso] e que até hoje rege as relações de afeto. Um comportamento veladamente questionado e amargamente engolido, tido como fel principalmente por aqueles que iniciaram suas relações na adolescência e que não tenham intenção de desfazer a união.
Entretanto, a maioria mais cedo ou mais tarde experimenta um conflito. Querem manter a relação, mas o corpo, ainda que eventual e passageiramente, diz não ao conceito [moral] de fidelidade. Contudo, no modelo obrigatório e policialiesco monogâmico não há espaço ao eventual, passageiro. A ordem é uma só: monogamia, como se existisse monovontade, monodesejo, monoverdades.
Por ser tão recorrente o conflito que acomete a um ou a ambos do par, é quase impensável que não haja dedicação ao esclarecimento público sobre as mazelas e perdas causadas pelo formato obrigatório de um único modelo de relação. Aliás, nos dias atuais, pensando-se o fenômeno das garantias individuais em todas as esferas, haverá ainda espaço para estereótipos relacionais em que a ordem seja a obrigação, ou subjugação à vontade alheia - ainda que se trate de um paradigma social?
O vir-a-ser, me parece, diz com a liberdade de escolha do modelo a seguir, afastando-se de vez a ideia que vincula relacionamento à posse sobre um corpo. Se for pra ser mono, que seja por liberalidade, pelo querer, sem dever ou garantia de permanência no estado - esta se constroi, não se exige.
Contraditória, como todos os mortais, gosto da quietude do embalo na rede da varanda, do silêncio, assim como da rotina alucinada dos dias que preenchem o calendário, acelerada. Gosto de estar em mim, somente comigo, do mesmo modo que do barulho de outras ideias, de outros corpos, de toques - na pele e nos ouvidos. Agrada observar e interagir com a calmaria interior dos velhos, sua sabedoria, e com a balbúrdia existencial juvenil. Impressionam a carência e angústias dos adultos, procurando e correndo, sem saber o que, nem para onde - talvez por que corram maratonas diárias em franca fuga de si. E mesmo assim sempre um aprendizado esse observar. Sensibiliza a diferença, outros jeitos, os olhos que falam, músculos faciais que expressam, gente que comunica pela força do que é. É puro deleite as gargalhadas da piada feita sobre a cena do acaso, observada por olhos embriagados pelo espumante rosé - transforma as cores do cenário e o significado das palavras, porque ouvidos etílicos às vezes distorcem, noutras dão o rumo certo para aquela vez. Gosto de abrir novas janelas, olhar outras geografias, outras mentes e reafirmar que a diversidade nutre, preenche. Gosto porque, além de outros tantos, são fragmentos da vida em si.
Esperar talvez signifique deixar passar aquele que jamais faria o silêncio. Porque silêncios são ausências que fazem elucubrar sobre as coisas que o outro estivesse (ou não) pensando. Esperar pode ser entregar os dias ao destino de uma bola de cristal, adivinhando, adivinhando, adivinhando. Embora os outros movimentos perante a vida que complementam a existência, esperar alguém pode significar manter estático o coração, paralisado em um tempo (sentir) passado que não se sabe em que resultaria no tempo presente - pelas marcas, novas compreensões. Aposto no adeus à inércia - pois, embora certa e segura (a inércia), seu universo tormentoso de dúvidas indica não valer a pena - por que se falto, sou necessária e, portanto, não há silêncio. Particulares escolhas. Cada qual com as suas.
Comentário de minha autoria no post 'Falta', de Caio Fernando de Abreu, publicado no blog andreatpm
Ah! Sempre ele
O tempo
Senhor do destino, do imponderável
Ah! sempre elas
As datas
Senhoras dos movimentos, ações
Ah! E eu
Correndo, desdobrando-me
Acelerando, redirecionando
Alinhando-me a eles, tempo, datas...
Tudo tão intenso - e cíclico.
Embora a ordem e forma das coisas
Embora os planos, os sonhos
A vida se faz no tempo presente
E bem agora faz-se o tempo de jogar âncora:
Férias.
É nesse doce balanço que sigo daqui.
(Por que é no balando das horas que tudo pode mudar! E sempre muda, muito muda de lugar.)
Antes de voltar de lá, deixo aqui meu desejo de um Natal de celebração do carinho e afeto, torcendo para um Ano Novo de felicidades, na exata medida da capacidade de alcançar os sonhos sonhados.