domingo, 18 de julho de 2010

Cartas - Felicidade: questão de ponto de vista



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Artista Plástico: Nelson Wilbert - Porto Alegre, RS, Brasil




Querida amiga:

Quero agradecer o texto compartilhado. Embora já o conhecesse, é sempre bom reler. E nesse caso foi involuntário um pensar, ou pensares, como preferir. Convido-te, então, para pensarmos juntas, pois sei que dás asas à imaginação quando provocada. Entretanto, devido à demora nesta resposta, talvez não lembres sobre o que tratava. Vou refrescar-te a memória com o trecho que interessou, então:

Definitivo, como tudo o que é simples.
Nossa dor não advém das coisas vividas, mas das coisas que foram sonhadas e não se cumpriram.
Sofremos por quê? Porque automaticamente esquecemos o que foi desfrutado e passamos a sofrer pelas nossas projeções irrealizadas, por todas as cidades que gostaríamos de ter conhecido ao lado do nosso amor e não conhecemos, por todos os filhos que gostaríamos de ter tido juntos e não tivemos, por todos os shows e livros e silêncios que gostaríamos de ter compartilhado, e não compartilhamos. Por todos os beijos cancelados, pela eternidade.
(...)
Como aliviar a dor do que não foi vivido? A resposta é simples como um verso: Se iludindo menos e vivendo mais! A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida está no amor que não damos, nas forças que não usamos, na prudência egoísta que nada arrisca, e que, esquivando-se do sofrimento, perdemos também a felicidade. A dor é inevitável. O sofrimento é opcional.
Carlos Drumond de Andrade

Convido-te a fazer a leitura a partir unicamente da hipótese de um amor frustrado, em que aquele que arriscou mais alto vamos chamar de bravo - porque em geral é assim que se percebe -, e o sujeito destinatário desta bravura chamaremos de fraco - porque assim o destemido e a sociedade o consideram -, uma vez que este não conseguiu se libertar das amarras da vida para viver uma história plena ao lado do bravo. Essa interpretação não é minha caríssima, é do mundo. Observe. Mas vamos à provocação, e antes mesmo de adentrar no que a mim interessa, adianto uma pergunta: Será uma espécie de onipotência julgar-se bravo, destemido, em contraposição à suposta fraqueza do outro? Vamos elucubrar juntas.

Primeira impressão: No ápice da ruptura da relação, em estado de dor aguda, tem-se dois sujeitos em condições antagônicas: o bravo e o fraco. Aquele que tudo arrisca e o outro que a tudo teme, recua.
Parênteses. Primeiras impressões, dizem, são as que ficam. Acredito que não. Direi o porquê. Fecha parênteses.


Impressiona observar que quando transcendida a fase da torpeza da dor, insights de lucidez são inevitáveis e recorrentes. Sentenças a perguntas que ficaram sem respostas eclodem involuntárias, efervescentes. Nasce aqui a segunda impressão, e para acompanhares meu raciocínio, faço-te duas perguntas:

Não te parece muito mais sinônimo de fraqueza aceitar o convite de se jogar no mundo do sentir através do modelo romântico? Qual seja, o de dizer sim à proposta ao risco de perder-se no outro, confundir-se em um só, apontando para uma espécie de perda de identidade, como rezam as cartilhas dos poetas, novelas e filmes, conforme sinaliza o poema?

E por outro lado, pergunto ainda, não te sugere coerência, ou um ato de bravura até, abrir mão de um verdadeiro amor em nome, por exemplo, de pressão familiar ou social que, impiedosos e perversos na forma, subjugam o ente  enamorado a ponto de fazê-lo(a) acreditar - e acreditam, pasme! - que não poderá gozar do passado e do presente, impondo-lhe uma única escolha?

Caríssima, nessas hipóteses, fico imaginando que, no primeiro caso, não haverá bravura quando aquele que é tido como o destemido acomete-se do mimetismo das relações; qual seja, o perder-se no outro, pretender uma fusão de dois em um só.
Assim como imagino ainda, no segundo caso, não haverá fraqueza quando, egocentrado, aquele que é tido como fraco pelos padrões de valores sociais, evitar os efeitos do risco, com base no mais primário dos instintos: o da autopreservação.

E veja que interessante. Em nível de sentir a dois, dicotômicas e antagônicas, ao fim e ao cabo, bravura e fraqueza transmutam-se num só, um só signo: frustração - quer por perder-se de si mesmo, no outro, seja pelo inacabado, inconcluído por inconclusivo. Oriundo do privar-se e ser privado, por circunstâncias externas à vontade [consciente] daqueles dois.
Desse ponto de vista então, talvez seja essa segunda impressão - a frustração -,  a que fica.

Mas não te assustes cara mia, pois seria terrível se se esgotassem aqui as conclusões. Vão além. É que frustrar ou frustrar-se tem seus efeitos mediatos, melhor dizendo, a longo prazo: bem verdade que poderá resultar disso apenas dejetos de sentimentos miseráveis - dores, autopiedade, vitimização. Ou, no que  seria sano apostar, redundará crescimento, amadurecimento emocional, fertilizados na dor.

Por isso, minha fiel interlocutora, neste ponto, é de se concordar plenamente com o poeta, uma vez que de fato todos têm escolha: fenecer nas inquietudes angustiantes do sentir-se frustrado, ou migrar para o patamar da compreensão. Enxergar que existem outras verdades para além da individual, sem julgar com os olhos viciados em clichês e estereótipos de relações frustradas. O resultado será transcender, elevar, aprender e apreender as razões e motivos que levaram não viver aquele amor. O prêmio final será resgatar a capacidade de sonhar novos sonhos a serem sonhados a partir da consciência de que felicidade se encontra no 'em si', in, não out, independentemente do agir do futuro depositário de seus sentimentos.

Veja bem. O experimentado poeta nos diz do desperdício da vida: o amor que não damos, as forças que não usamos, a prudência egoísta que nada arrisca, e que, esquivando-se do sofrimento, perdemos também a felicidade.  É verdade? Arrisco responder um não. Seria apenas ‘uma’ verdade, pois, segundo a leitura, pergunto: será que felicidade não pode estar, também, justamente no recuo, no não-arriscar?  E a resposta poderá ser 'sim' se aquele que teme ou recua apropriar-se da verdade de que felicidade estará onde resida sua zona de conforto, a despeito de ser tida como zona morta por aqueles que tudo arriscam.

Então, felicidade é apenas uma questão de ponto de vista, não te parece? Ou seja, cara amica, nem tudo é o que parece ser. E o risco, me parece, reside unicamente na conduta onipotente de julgar as razões alheias, tendo como fonte subsídios rasos, resultando conclusões discrepantes dos reais motivos do outro.

Me parece, feliz tende a ser quem aprendeu ponderar sobre o imponderável, para além daquilo que precise acreditar - como meio de justificativa de sua própria cegueira.

Bacio, cara mia.


2 comentários:

  1. Cara,

    Tenho uma só palavra sobre o texto – LUCIDEZ

    Enternece-me e espanta (sinceras desculpas) o nível de lucidez e a beleza com que escreves agora.

    Vem-me a mente uma frase – do período de construção de Brasília – “cinqüenta anos em um” -assim te vejo/sinto agora.

    Esta observação inicial foi feita assim que lido o texto até a parte em que fizeste duas perguntas.
    Agora, escrevo novamente a partir do fim do texto:

    Lúcido, lindo, vivenciado, sofrivivido.

    Crescimento da alma que me faz também pensar primeiramente nos contos infantis...”E viveram felizes para sempre” é o começo do fim, é o engano retransmitido para a tenra e inocente idade (injusto fazer as crianças acreditarem em algo assim - definitivo)

    Mas o fim em si, a meu ver atual é: o “Separaram-se para viverem felizes para sempre”. Esta me parece, agora, a verdadeira história.

    Como você relata o “jogar-se” no outro, o misturar-se e homogenizar-se é romântico, mas deveria ficar restrito a textos, contos, filmes...

    Nesta fase da vida em que a análise é feita a partir da mente e não do enganador “coração”, o que conta é o dissecar da covardia valente que com primor revelaste. A vitória do anti-herói. Aquele que salvou o relacionamento com a sua negação. Talvez aquele que mais amou, porque consciente. Aquele que viu a grandeza daquele momento - não como um náufrago, mas como um sôfrego sobrevivente.

    Aquele que tornou o relacionamento eterno. Aquele que manejou o punhal que atingiu o próprio coração e depois o do pretenso bravo.

    Aquele que fez isso no auge da paixão, não pode ser chamado de covarde.

    Uma vez, ao consolar uma querida amiga que perdera o seu amor, eu falei: você não vê a felicidade que esta despedida te deu? Teu sofrimento te impede de ver que choras por que tens motivos: ele te proporcionou tantas coisas boas que a cada lugar em vás, vinho que bebas ou música que ouças – ali ele estará e te fará sofrer a falta das boas coisas – sofrimento que acrescenta.

    Triste seria pensar que, apesar de ter vivido 15 ou mais anos com alguém, choras na despedida o passeio que não fizeste, a noite de amor que não viveste, o beijo negado, o apoio que não recebeste. Sofrimento, este, que corrompe a alma, torna inútil o tempo que se perdeu juntos.

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  2. Ora ora, cara mia. Antes de mais nada, preciso aparar o excesso de elogios. Fico apenas com parte deles, pois recusar sugeriria hipocrisia, na medida em que o simples fato de publicar, por si só, já é sinônimo de vaidade indisfarçável, não é mesmo? E tudo que acredito não sejamos é hipócritas - ao menos na maior parte do tempo em que nos pegamos conscientes.

    Mas te devolvo os elogios, dizendo do meu sempre enorme deleite em ler o encadear de tuas ideias, e das horas que roubamos do tempo lá fora brincando o jogo de palavras por simples prazer, fugindo de nossa rotina enlouquecida atrás das pilhas (de processos). Complementares. Tuas traduções são poéticas, lindas, acrescentam véus de emoção nas duras conclusões do racional.

    Tenho outras tantas cartas (virtuais) que trocamos ao longo destes anos, quem sabe te devolva algumas para ver como sentes agora?

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