quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Das observações do universo feminino: 'Tese' da semivirgem, apesar dos novos tempos

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Tarsila do Amaral




O quadro: O mito de transar na primeira vez. A mulher conhece o fulano e vai direto para a cama no primeiro dia. O moço a interessa para romance. E nessa condição, mesmo sem ser perguntada, a mulher tende a justificar seu 'impulso permissivo/promíscuo', no intuito único de afugentar qualquer fumaça de pensamento que a inclua no rol das promíscuas. Afinal, acreditemos ou não, segue no imaginário comum a existência de uma identidade 'mulher pra casar' - leia-se 'pra casar' como relações estáveis. O carimbo no passaporte 'pra casar' vai ser lido a partir do comportamento das moças - tão modernas para tantas coisas, mas que a cultura machista ainda as faz dançar conforme a dança cultural.

Cena. Vão para cama. Exaustos do fim, jogam-se onde quer que seja. Hora de ela entrar derradeiramente em cena. Incorpora uma grande atriz hollywoodiana, ou Jenete-clairiana, conforme o gosto do freguês. Dá asas à imaginação, quando, de súbito, chama a atenção do único espectador, dando início à tragédia da vida privada. Posiciona-se no centro do palco, e seu único espectador será visto por ela como muitos, diante das múltiplas expectativas depositadas em um futuro namorado/marido. Então despeja o roteiro aprendido, ensaiado e praticado em tantos outros palcos por que já tenha se apresentado:

- Meu deus, meu deus... incrível, transei na primeira vez!! Isso nunca aconteceu comigo antes! O que, afinal, terá acontecido comigo hoje? Não consigo entender, é contra meus princípios, no mínimo espero até terceira vez... mas é que você... você, bem... você... você é tão espetacularmente espetacular em sua especialidade de ser espetacular que... enfim... sucumbi... Oh, céus...

Ok, corta! Fim do ato principal, e único que interessa aqui.
Ressalva: Tudo fake. E o ato teatral, diga-se, não é privilégio de menina de pouca idade apenas, vale para as balzaquianas e algumas lobas desavisadas também. E sim, homens, talvez porque precisem, costumam acreditar. Fecha a ressalva.
Dramaticidade à parte, fato é que é mais ou menos isto. Um drama repetido com maior ou menor veemência, (in)voluntária e contraditoriamente exercitado a partir de convicções culturais. Os tempos são outros, as atitutudes e discursos públicos são outros, próprios da irreverência que a contemporaneidade clama; mas, como se vê, no universo particular, privado, afloram as contradições e conflitos; e seguem as damas repetindo, repetindo, repetindo... perpetuando o modelo que conscientemente repelem.

Há lógica nisso. Uma mudança efetiva de valores sociais demanda décadas e décadas. Mexer com a cultura de um grupo social, pode ter o start em simbólicos atos, como queimar sutiãs em praça pública, declarar direitos de igualdade em legislações. Mas será apenas o start, pois que a introjeção de uma nova ordem dependerá da aceitação e prática cotidiana dos novos valores que se pretenda efetivar, igualmente praticando o exorcismo de tudo aquilo que conflitue, cause desconforto, por atemporal.

Cada um acredita no que precisa acreditar.
E cada um afugenta ou constroi dramas na exata medida de sua capacidade de ligar o 'dane-se' aos julgamentos alheios - que serão qualquer coisa diferente do que efetivamente se é.


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quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Diálogos que causam





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Fotografia: Shlomi Nissim




Diálogos que causam
seria algo próximo à trasmutação de estados, condição.

Mexem. Revolvem.
Modificam o esquadrinhamento de certos sentires,
compreensões,
construídos a partir de experiências boas,
outras nem tanto,
mas que guardamos sós.

Mexidos e homogeneizados
por meio da provocação,
transformam-se os sentires em novas sensações.
Alteram a ordem das coisas,
os olhares despendidos sobre nosso microcosmos particular.

 Resulta uma espécie de metonímia de sentimentos,
onde o sentir-se dilacerado
vai dizer de ricos fragmentos
de emoção –
involuntariamente desvelados.
Que, ao cabo, será bom.

Onde o maldizer circunstâncias
reveste-se de desafogo momentâneo,
desatando o nó
aliviando a ardida garganta -
machucada
pelo não-dizer.

Onde o aparente descaso
é de ser lido como negligência inconsciente
por circunstancial,
alheio a tudo que a nós possa parecer
pois do outro -
em sua verdade não nossa.

 E até mais pontual
- pueril, paradoxal -,
diálogos metamorfoseiam:
onde antes se lia tristeza
dali em diante se lê alegria.
Onde antes suscitava desassossego
da provocação redunda calmaria.

Onde antes sugeria vazio
O diálogo
[que causa]
- liquefeito -
permeia,
ocupa.





* Inspiração em dois dialógos distintos, com os amigos queridos: Démerson Dias e Lu Picolli

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sexta-feira, 26 de agosto de 2011

A_pegada





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Meu apego não diz, pois
com digitais que marcam.
Antes,
fortemente apegada
à pegada
que toca
a alma.




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segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Das flores de acácia

Lembro dos beijos roubados
e daqueles consentidos, apertados
Das cóssegas que faziam dobrar de rir
Dos banhos de rio, permitidos somente mais tarde
depois da digestão da melancia
- que passei a não comer mais...
Dos passeios na barca Esperança,
nome que demorei anos
para entender a tua escolha.
Das bonecas, dos triciclos e bicicletas
dos Natais que faziam olhos brilhar
Dos discos tocando, dos passos ensinados de dança
Dos espetáculos dos palhaços no picadeiro
de cada circo que chegasse na cidade





Das lágrimas no teu rosto
e da tua mão segurando forte a minha
enquanto a criança chorava
em quartos de hospitais
- medo de 'injeções'
que eram para curar.
E por isso,
Das missas e procissões,
das asas de anjo,
pagando as tuas promessas
para Deus me salvar.
E me deste a vida duas vezes!




Das nossas sexta-feiras,
durante as férias,
convocada para o posto de navegadora de bordo
percorrendo as estradas de chão batido,
embriagados pelo cheiro das flores de acácia negra,
[a árvore de onde colheste tantos frutos,
é perfume
pra sempre
impregnado em mim]
Acompanhados de música,
cantarolávamos juntos
repertórios sem fim.




Do meu fascínio por guiar,
oriundo do teu colo,
me ensinando aquela lógica estranha
de trocas de marcha e direções.
Faltaria muito até alcançar
o entendimento
e os pedais.




Lembro do teu gesto de leão,
defendendo a leoazinha
- e nem era pra tanto...

Das tuas lutas e batalhas sociais
dos discursos que me orgulhavam
de tua conduta ética,
teu caráter, boa-fé exagerada,
sem jamais se deixar contaminar.

Compreendi a aparente ausência,
sabendo hoje que ausência de evidência
não significa evidência de ausência *
- era tua forma.

Enxergo o meu sorriso
e ganas
que lembram os teus.

  Obrigada por poder te agradecer.

[Adair Vianna -  25.09.1935 - 24.06.2012]



*Carl Sagan




terça-feira, 9 de agosto de 2011

domingo, 31 de julho de 2011

O que te difere?

Arte: Marcel Caram




"O que é que te assombra, estrangeiro,
Se o mundo é a pátria em que todos vivemos,
Paridos pelo caos?"
Meleagro de Gádara, poeta grego, 100 a.C.


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sábado, 30 de julho de 2011

Do mundo jurídico: acerca de 'ser', para além do 'dever-ser'*

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Arte: Salvador Dalí


“o discurso critico não pode ter nenhuma pretensão de completude, nem pode pretender falar alternativamente em nome de nenhuma unidade ou harmonia, já que está em processo permanente de elaboração” (Luis Alberto Warat)

Por Márcio Berclaz *


1. Ter na crítica a principal ferramenta para superação e transformação da realidade;

2. Não se contentar com as limitações do “senso comum teórico” (WARAT) ou qualquer outro tipo de dogmatismo ou fetichismo por mais sedutor que seja o seu “canto da sereia” (ex: positivismo jurídico);

3. Não se iludir com a visão simplista do direito reduzido ao monopólio nos enunciados do Estado, emprestando valor (e vigor) ao pluralismo jurídico como idéia a ser posta em constante movimento (WOLKMER);

4. Saber que fazer justiça, mais do que mera lógica ou subsunção asséptica e neutra, passa por escolhas autorais valorativas e corajosas, desde que necessária e constitucionalmente fundamentadas, ainda que isoladas ou minoritárias, não por decisões “anônimas” atribuída aos Tribunais Superiores;

5. Enxergar o direito pela lente contra-hegemônica, com a compreensão da sua historicidade;

6. Reconhecer que existem aparelhos ideológicos de dominação (ALTHUSSER) que exercem forte influência (e alienação) sobre a forma de interpretar e aplicar o direito, daí a importância da hermenêutica jurídica e filosófica (STRECK);

7. Ter consciência de que as relações jurídicas derivam das relações sociais, genealogia que, a despeito do discurso normativo, justifica a permanente busca de aproximação do “dever-ser” para o plano do “ser”;

8. Refletir sobre o direito não a partir de ingênua linearidade da história, mas com a percepção de que a colonização, o escravismo, a “sacralização” da propriedade e outra vicissitudes servem de alerta para mostrar a contingência do presente e o uso instrumental (e indevido) que muitos tentam fazer do direito para a perpetuar a dominação;

9. Defender um direito livre e vivo (EHRLICH), pleno de faticidade e distante da “standardização”;

10. Perceber que o ensino jurídico permanece em crise aguda e saber que sem que haja a sua radical transformação, com prioridade efetiva para as disciplinas formativas ou propedêuticas, não há melhor horizonte possível;

11. Saber que o direito, mais do que ser reproduzido acriticamente, assim como o humano, está em permanente construção e fecundação, sujeito ao materialismo histórico da realidade;

12. Saber que o direito, antes de instrumento de dominação, pode ser poderoso arma de combate (Nietzsche) para “martelar” interferência positiva na realidade social, contanto que cada operador ou jurista saiba reconhecer sua condição de sujeito protagonista;

13. Desconfiar que um projeto de juridicidade alternativa, mais do que possível, é urgente e efetivamente necessário;

14. Reconhecer que os “buracos”, as lacunas e as contradições do sistema são ferramentas necessárias para mostrar que o compromisso que se há de ter é com o “fundo” e não com a forma;

15. Saber que é preferível a insegurança e o desconforto do direito como espaço da “falta” do que reduzi-lo a uma embalagem recheadas de verdades e certezas;

16. Reconhecer que o melhor caminho a seguir passa longe das autopistas dos leguleios, exigindo digestão e interpretação emancipatória, por maior que seja o desafio da encruzilhada na falta de sinalização;

17. Refletir sobre os significados possíveis do significante “direito novo” (ex: justiça restaurativa, mediação, “direito achado na rua” ou qualquer outra idéia de cunho diferente e progressista);

18. Saber que não há bom direito sem que se faça uma interlocução do seu “achado” com outras experiências de sensibilidade (literatura, arte, música,teatro, etc);

19. Conhecer os escritos de Pashukanis, La Torre Rangel, Michel Miaille, Roberto Lyra Filho, Amilton Bueno de Carvalho, Antonio Carlos Wolkmer, Edmundo Lima de Arruda Júnior, Alexandre Morais da Rosa, entre outros;

20. Lembrar com saudade e saber que o barco maravilhoso, carnavalizado e surrealista de Luís Alberto Warat/Casa Warat precisa continuar...

* Márcio Berclaz, Promotor de Justiça. Blog Recortes Críticos - recomendado.


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domingo, 24 de julho de 2011

Universo de nós dois

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Arte: Helene Knoop








E tem que ser bom, leve, divertido
Porque já havemos saber
que rir de nós mesmos
e do que venha do outro
fundamenta existências
Que seja despretenciosamente pretencioso
e pretenciosamente liberto
das amarras do passado
que em regra
estereotipam conceitos
Que encante
que me coma
que eu coma
um comer-se mútuo
- de cabeças.
Que seja tranquilo
- na tranquilidade inquietante
que somente impacienta
por conta das horas que faltam
para de novo e outra vez
e mais outra
repetir - a presença
E quando doer
que seja pela exaustão dos corpos
porque nesta mutualidade
faz-se o corpo ávido
sem limites
tudo permite
estira músculos
rompe a pele
ultrapassa a própria capacidade
sensorial
- pois que arde,
na melhor acepção de dor física.
E quando houver percalços, tropeços
sejam eles contornados 
com a reserva 
do aprendizado
que o tempo fez acumular
E sendo assim
boa viagem
ao universo de nós dois.


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sexta-feira, 22 de julho de 2011

Aquele que ensandece

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Toda mulher,
se já não conheceu,
deveria um dia conhecer,
um gigante de Marraquesh.
- apesar do Marrocos.


O anão de Marraquesh
       [Affonso Romano de Sant’Anna]

Em Marraquesh há um anão que ensandece as mulheres.
Elas vão ao banho (dizem aos maridos)
fazer limpeza de pele
mas algo a mais ali sucede,
basta ver como depois
além do corpo
a alma lhes vai leve.
O segredo deste anão está guardado na palma de sua mão,
pois com seus dedos sabe sublimar as mulheres.
Elas vêm
e ele
com silencioso gesto
pede que se dispam - se despem.
Se ele dissesse: voem voariam,
se dissesse: dancem, dançariam,
se dissesse: amem-me o seu mínimo corpo, amariam.
Mas pede apenas que larguem suas vestes
e se deitem
à espera que suas pequenas mãos se agigantem
e abram portas, janelas
desvãos abismos
na vertigem da viagem dentro da própria pele.
Quando se despem
despedem-se dos maridos
e já não mais carecem de amantes
é como se Penélope
convertida em Ulisses
nas mãos do anão
a Odisséia sentisse.
Ninguém sabe exatamente o que seus dedos operam.
Começa pelos pés
e algo vem subindo
devagar
ao leve toque que não toca,
que roça, às não fere,
que solicita e impera
e vai em círculos
como se o bem e o mal se transcendessem numa espiral de delícias.
Os maridos e parceiros ficam no hall do hotel bebendo uisque, nas quadras jogando tênis e nunca saberão o que ocorreu ao leve toque daquelas pequenas potentes, suaves mãos.
Finda a massagem (nome conveniente à transfigurante viagem) as mulheres reaparecem translúcidas, caminhando a um centímetro do chão
irrompem inalcançáveis
como se tivessem tido uma visão.
Aos maridos não adianta qualquer explicação. Há na pele da alma delas algo de que jamais se esquecem:
o irrepetível toque
dos dedos
e das mãos
do anão de Marraquesh.



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quarta-feira, 20 de julho de 2011

Devia ser proibido*







Devia ser proibido, fumar?
Não.
Não conhecer, ouvir e sentir Itamar.



Poesia musicada, deliciosamente interpretada por Itamar Assumpção e Zélia Duncan.
Sinta, ouça.
http://www.youtube.com/watch?v=uCy1OE48Ros

E leia

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Devia Ser Proibido
    [Itamar Assumpção]

Devia ser proibido
Uma saudade tão má
De uma pessoa tão boa
Falar, gritar, reclamar
Se a nossa voz não ecoa
Dizer não vou mais voltar
Sumir pelo mundo afora
Alguém com tudo pra dar
Tirar o seu corpo fora
Devia ser proibido
Estar do lado de cá
Enquanto a lembrança voa
Reviver, ter que lembrar
E calar por mais que doa
Chorar, não mais respirar (ar)
Dizer adeus, ir embora
Você partir e ficar
Pra outra vida, outra hora
Devia ser proibido...






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