sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Liberdade de sentir Pessoa





A liberdade é a possibilidade do isolamento. És livre se podes afastar-te dos homens, sem que te obrigue a procurá-los a necessidade de dinheiro, ou a necessidade gregária, ou o amor, ou a glória, ou a curiosidade, que no silêncio e na solidão não podem ter alimento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo. Podes ter todas as grandezas do espírito, todas da alma: és um escravo nobre, ou um servo inteligente: não és livre. E não está contigo a tragédia, porque a tragédia de nasceres assim não é contigo, mas do Destino para si somente. Ai de ti, porém, se a opressão da vida, ela própria, te força a seres escravo. Ai de ti se, tendo nascido liberto, capaz de te bastares e de te separares, a penúria te força a conviveres. Essa, sim, é a tua tragédia, e a que trazes contigo.
Nascer liberto é a maior grandeza do homem, o que faz o ermitão humilde superior aos reis, e aos deuses mesmo, que se bastam pela força, mas não pelo desprezo dela.
A morte é uma libertação porque morrer é não precisar de outrem. O pobre escravo vê-se livre à força dos seus prazeres, das suas mágoas, da sua vida desejada e contínua. Vê-se livre o rei dos seus domínios, que não queria deixar. As que espalharam amor vêem-se livres dos triunfos que adoram. Os que venceram vêem-se livres das vitórias para que a sua vida se fadou.
Por isso a morte enobrece, veste de galas desconhecidas o pobre corpo absurdo. É que ali está um liberto, embora o não quisesse ser. É que ali não está um escravo, embora ele chorando perdesse a servidão. Como um rei cuja maior pompa é o seu nome de rei, e que pode ser risível como homem, mas como rei é superior, assim o morto pode ser disforme, mas é superior, porque a morte o libertou.
Fecho, cansado, as portas das minhas janelas, excluo o mundo e um momento tenho a liberdade. Amanhã voltarei a ser escravo; porém agora, só, sem necessidade de ninguém, receoso apenas que alguma voz ou presença venha interromper-me, tenho a minha pequena liberdade, os meus momentos de excelsis.
Na cadeira, aonde me recosto, esqueço a vida que me oprime. Não me dói senão ter-me doído.

                                                                  [Fernando Pessoa]







segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Audições


Gustav Klimt

Esconder-se no porão, de vez em quando, é necessidade vital. Precisamos de silêncio e solidão, e, não, apenas os poetas. Senão, corremos o perigo de nos esvairmos em som, fúria e esterilidade. O campo para que a palavra se instale para o autor e para o leitor é o campo do silêncio e da audição.
                                                                                     Adélia Prado





sábado, 5 de outubro de 2013

Poeminha embrigado






Embora todas as razões
da razão
danaram-se elas todas em seu berço
de passado e de futuro
tudo porque eu te devorava
no instante desta espumante
tal e qual o tempo das bolhinhas
do fundo à borda do copo
as felicidades são estanques
e eu com isso, quando pra mim
felicidade mora no atemporal instante
de seus efeitos? [perpétuos]