domingo, 31 de julho de 2011

O que te difere?

Arte: Marcel Caram




"O que é que te assombra, estrangeiro,
Se o mundo é a pátria em que todos vivemos,
Paridos pelo caos?"
Meleagro de Gádara, poeta grego, 100 a.C.


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sábado, 30 de julho de 2011

Do mundo jurídico: acerca de 'ser', para além do 'dever-ser'*

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Arte: Salvador Dalí


“o discurso critico não pode ter nenhuma pretensão de completude, nem pode pretender falar alternativamente em nome de nenhuma unidade ou harmonia, já que está em processo permanente de elaboração” (Luis Alberto Warat)

Por Márcio Berclaz *


1. Ter na crítica a principal ferramenta para superação e transformação da realidade;

2. Não se contentar com as limitações do “senso comum teórico” (WARAT) ou qualquer outro tipo de dogmatismo ou fetichismo por mais sedutor que seja o seu “canto da sereia” (ex: positivismo jurídico);

3. Não se iludir com a visão simplista do direito reduzido ao monopólio nos enunciados do Estado, emprestando valor (e vigor) ao pluralismo jurídico como idéia a ser posta em constante movimento (WOLKMER);

4. Saber que fazer justiça, mais do que mera lógica ou subsunção asséptica e neutra, passa por escolhas autorais valorativas e corajosas, desde que necessária e constitucionalmente fundamentadas, ainda que isoladas ou minoritárias, não por decisões “anônimas” atribuída aos Tribunais Superiores;

5. Enxergar o direito pela lente contra-hegemônica, com a compreensão da sua historicidade;

6. Reconhecer que existem aparelhos ideológicos de dominação (ALTHUSSER) que exercem forte influência (e alienação) sobre a forma de interpretar e aplicar o direito, daí a importância da hermenêutica jurídica e filosófica (STRECK);

7. Ter consciência de que as relações jurídicas derivam das relações sociais, genealogia que, a despeito do discurso normativo, justifica a permanente busca de aproximação do “dever-ser” para o plano do “ser”;

8. Refletir sobre o direito não a partir de ingênua linearidade da história, mas com a percepção de que a colonização, o escravismo, a “sacralização” da propriedade e outra vicissitudes servem de alerta para mostrar a contingência do presente e o uso instrumental (e indevido) que muitos tentam fazer do direito para a perpetuar a dominação;

9. Defender um direito livre e vivo (EHRLICH), pleno de faticidade e distante da “standardização”;

10. Perceber que o ensino jurídico permanece em crise aguda e saber que sem que haja a sua radical transformação, com prioridade efetiva para as disciplinas formativas ou propedêuticas, não há melhor horizonte possível;

11. Saber que o direito, mais do que ser reproduzido acriticamente, assim como o humano, está em permanente construção e fecundação, sujeito ao materialismo histórico da realidade;

12. Saber que o direito, antes de instrumento de dominação, pode ser poderoso arma de combate (Nietzsche) para “martelar” interferência positiva na realidade social, contanto que cada operador ou jurista saiba reconhecer sua condição de sujeito protagonista;

13. Desconfiar que um projeto de juridicidade alternativa, mais do que possível, é urgente e efetivamente necessário;

14. Reconhecer que os “buracos”, as lacunas e as contradições do sistema são ferramentas necessárias para mostrar que o compromisso que se há de ter é com o “fundo” e não com a forma;

15. Saber que é preferível a insegurança e o desconforto do direito como espaço da “falta” do que reduzi-lo a uma embalagem recheadas de verdades e certezas;

16. Reconhecer que o melhor caminho a seguir passa longe das autopistas dos leguleios, exigindo digestão e interpretação emancipatória, por maior que seja o desafio da encruzilhada na falta de sinalização;

17. Refletir sobre os significados possíveis do significante “direito novo” (ex: justiça restaurativa, mediação, “direito achado na rua” ou qualquer outra idéia de cunho diferente e progressista);

18. Saber que não há bom direito sem que se faça uma interlocução do seu “achado” com outras experiências de sensibilidade (literatura, arte, música,teatro, etc);

19. Conhecer os escritos de Pashukanis, La Torre Rangel, Michel Miaille, Roberto Lyra Filho, Amilton Bueno de Carvalho, Antonio Carlos Wolkmer, Edmundo Lima de Arruda Júnior, Alexandre Morais da Rosa, entre outros;

20. Lembrar com saudade e saber que o barco maravilhoso, carnavalizado e surrealista de Luís Alberto Warat/Casa Warat precisa continuar...

* Márcio Berclaz, Promotor de Justiça. Blog Recortes Críticos - recomendado.


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domingo, 24 de julho de 2011

Universo de nós dois

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Arte: Helene Knoop








E tem que ser bom, leve, divertido
Porque já havemos saber
que rir de nós mesmos
e do que venha do outro
fundamenta existências
Que seja despretenciosamente pretencioso
e pretenciosamente liberto
das amarras do passado
que em regra
estereotipam conceitos
Que encante
que me coma
que eu coma
um comer-se mútuo
- de cabeças.
Que seja tranquilo
- na tranquilidade inquietante
que somente impacienta
por conta das horas que faltam
para de novo e outra vez
e mais outra
repetir - a presença
E quando doer
que seja pela exaustão dos corpos
porque nesta mutualidade
faz-se o corpo ávido
sem limites
tudo permite
estira músculos
rompe a pele
ultrapassa a própria capacidade
sensorial
- pois que arde,
na melhor acepção de dor física.
E quando houver percalços, tropeços
sejam eles contornados 
com a reserva 
do aprendizado
que o tempo fez acumular
E sendo assim
boa viagem
ao universo de nós dois.


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sexta-feira, 22 de julho de 2011

Aquele que ensandece

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Toda mulher,
se já não conheceu,
deveria um dia conhecer,
um gigante de Marraquesh.
- apesar do Marrocos.


O anão de Marraquesh
       [Affonso Romano de Sant’Anna]

Em Marraquesh há um anão que ensandece as mulheres.
Elas vão ao banho (dizem aos maridos)
fazer limpeza de pele
mas algo a mais ali sucede,
basta ver como depois
além do corpo
a alma lhes vai leve.
O segredo deste anão está guardado na palma de sua mão,
pois com seus dedos sabe sublimar as mulheres.
Elas vêm
e ele
com silencioso gesto
pede que se dispam - se despem.
Se ele dissesse: voem voariam,
se dissesse: dancem, dançariam,
se dissesse: amem-me o seu mínimo corpo, amariam.
Mas pede apenas que larguem suas vestes
e se deitem
à espera que suas pequenas mãos se agigantem
e abram portas, janelas
desvãos abismos
na vertigem da viagem dentro da própria pele.
Quando se despem
despedem-se dos maridos
e já não mais carecem de amantes
é como se Penélope
convertida em Ulisses
nas mãos do anão
a Odisséia sentisse.
Ninguém sabe exatamente o que seus dedos operam.
Começa pelos pés
e algo vem subindo
devagar
ao leve toque que não toca,
que roça, às não fere,
que solicita e impera
e vai em círculos
como se o bem e o mal se transcendessem numa espiral de delícias.
Os maridos e parceiros ficam no hall do hotel bebendo uisque, nas quadras jogando tênis e nunca saberão o que ocorreu ao leve toque daquelas pequenas potentes, suaves mãos.
Finda a massagem (nome conveniente à transfigurante viagem) as mulheres reaparecem translúcidas, caminhando a um centímetro do chão
irrompem inalcançáveis
como se tivessem tido uma visão.
Aos maridos não adianta qualquer explicação. Há na pele da alma delas algo de que jamais se esquecem:
o irrepetível toque
dos dedos
e das mãos
do anão de Marraquesh.



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quarta-feira, 20 de julho de 2011

Devia ser proibido*







Devia ser proibido, fumar?
Não.
Não conhecer, ouvir e sentir Itamar.



Poesia musicada, deliciosamente interpretada por Itamar Assumpção e Zélia Duncan.
Sinta, ouça.
http://www.youtube.com/watch?v=uCy1OE48Ros

E leia

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Devia Ser Proibido
    [Itamar Assumpção]

Devia ser proibido
Uma saudade tão má
De uma pessoa tão boa
Falar, gritar, reclamar
Se a nossa voz não ecoa
Dizer não vou mais voltar
Sumir pelo mundo afora
Alguém com tudo pra dar
Tirar o seu corpo fora
Devia ser proibido
Estar do lado de cá
Enquanto a lembrança voa
Reviver, ter que lembrar
E calar por mais que doa
Chorar, não mais respirar (ar)
Dizer adeus, ir embora
Você partir e ficar
Pra outra vida, outra hora
Devia ser proibido...






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domingo, 17 de julho de 2011

Um olhar que não te atravesse*

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Foto: Joseph Cartright



Por adequado à série 'Das observações do universo feminino', combina estar aqui. Merece pequena observação: só fazem conosco aquilo que permitimos; e a medida da satisfação ou frustração está intimamente ligada à expectativa, por isto fica terminantemente proibido chorar.



Um olhar que não te atravesse
     *Stella Florence

É domingo. Você está enterrada até as orelhas sob cobertores, TV ligada numa luta de boxe qualquer que te hipnotiza com sua simetria de golpes. Então, o celular toca. Número desconhecido. Quem é? Sou eu. Ah, você odeia quando a coisa começa assim. Mas ele se identifica logo, conseguiu seu celular com um amigo.

Lembra de mim? Flashes de um homem de sobrancelhas loiras se espreguiçando devagar como um cão grande. E você adora grandes cães, com muito pelo, muita saliva, um grunhido rouco que significa “me coça” e uma maneira desajeitada de se jogar em cima de você. Sim, faz tempo, mas você se lembra dele. E em meia hora de conversa, sim, você gostaria de vê-lo agora. E nesse agora não há ansiedade, nenhuma ansiedade. No meio da conversa, ele pergunta:

– O que você quer?

– Um abraço. – você responde.
 
E é verdade. Você não quer muito mais do que isso. Um abraço e um olhar que não te atravesse, alguém que olhe dentro dos seus olhos e veja você, não o reflexo de si mesmo.

No carro, você pensa que todos os homens que passaram pela sua vida ultimamente só retiraram, cada um e todos eles, um naco da sua energia. Então, ao voltar para casa, você se percebe mais triste e mais sozinha e mais vazia e mais seca do que quando havia saído. Eles lanham seu rosto com a barba malfeita enquanto sugam o que você tem de mais precioso. Os homens te enfraquecem. Por que hoje seria diferente?

Ele te leva para o apartamento dele, te mostra sua vista do décimo quarto andar e encosta o peito em você. Apenas encosta. O suficiente para o cheiro dele subir direto para sua cabeça como uma longa tragada de baseado.

Mais tarde, você vai até o banheiro se lavar e tem a sensação de que aquela casa é acolhedora e quente. No corredor, você se agacha em frente a ele: Crow, o cachorro daquele homem. Grande e dourado, pêlos como fibra de ouro grudando na sua calça preta e aqueles redondos, densos e inocentes olhos castanhos. É ele quem acolhe as pessoas e esquenta a casa. É ele quem se aproxima e é ele quem te lança um olhar de reconhecimento, um olhar que não te atravessa, aquele olhar que você estava procurando. Com curiosidade e sem qualquer defesa. Ele é pura doação. Não importa quem você é, se sua barriga é flácida ou se sua garganta segura um choro doído há meses, não importa se sua maquiagem borrou e te deixou com imensas olheiras ou se você está menstruada: Crow te acolhe. Só com os olhos, ele te acolhe.

O homem te leva para casa e você se sente numa cena de “Lost in translation”: você, uma Scarlett Johansson no Japão, enquanto Bill Murray dorme no carro e a noite está agradável. Então você se lembra dele, dos seus enormes olhos que te devassaram num segundo. Crow. Pensando bem, você gostaria de chorar.



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segunda-feira, 11 de julho de 2011

Das observações do universo feminino: iniciar romance dá um cansaço!


Foto: Annie Leibovitz



Iniciar romance dá um cansaço!

Essa foi a conclusão de um grupo de mulheres que resolveu aquecer a noite gelada à base de vinho e trocas.

A partir da frase, os comentários giraram em torno do comportamento que se estabelece quando dos primeiros encontros com alguém interessante - para investir em romance.

Estes eventos, com menor ou maior investimento e expectativa, se transformam em uma espécie de inferno aqui na terra - inclusive já circulou na internet há alguns anos atrás uma bela descrição sobre este drama da vida privada feminina. O tal inferno na terra, se comparado, pode ser bem pior que um triatlo, uma maratona no deserto, ou ainda mais penoso que a escalada do Everest por um sedentário. Não é exagero, é que um simples encontro com o sujeito dos desejos é antecedido por horas de investimento em tempo e até dinheiro em alguns casos, além de muito, muito estres. 

Aliados à expectativa e ansiedade naturais que qualquer encontro com alguém que se julgue interessante gere, a parte prática tem início na procura de hora no salão de beleza para deixar em dia unhas, cabelo, depilação. Marcadas ‘as horas’, deslocar-se até o local e executar as árduas tarefas. Sim  árduas, porque não há prazer algum naquelas horas perdidas lá, salvo o resultado que é a recompensa que faz toda mulher sempre voltar. Do salão, algumas podem ainda dar uma passadinha no shopping, que na verdade pode se transformar em horas para investir em alguma coisa nova, qualquer coisa. Isso porque talvez inconscientemente acredite que o elemento novo tenha um poder mítico sobre a autoestima, uma espécie talismã de boa sorte - só pode! [Vou me abster]. A maratona termina em casa, e termina literalmente com as duas mãos sobre a cabeça, dizendo que não tem roupa! - enquanto olha pra montanha de roupas jogadas sobre a cama.  Sem falar nos sapatos, bolsas, maquiagem etc, em que muitas investem mais um par de horas, e o chão do quarto, a esta altura, já virou depósito. Quem já não viveu algo parecido com a via crucis das vinte e quatro horas que antecedem o encontro fatale?

E o investimento quando o encontro é com aquele outro sujeito, tipo assim: não-preenche-os-requisitos- mas-vou-lá-mesmo-assim.  
À unanimidade, a resposta foi: zero! Talvez o gasto máximo seja no consumo de alguns mililitros daquele gloss perdido no fundo da bolsa, considerando que a necessaire de maquiagem ficou na bolsa usada no dia anterior. Sem pit stop, sai direto do trabalho para o encontro.

Resultado desses encontros: Em regra, insucesso pleno com o sujeito interessante, e sucesso total com o sujeito desinteressante. Este último, em geral, acaba arrastando uma carreta bi-trem pela despojada e despretensiosa pretendente; se joga aos seus pés. É o cara literalmente afim. Não dá sinais em códigos cifrados, criptografados ou subliminares como fazem aqueles que não se interessam por você, este simplesmente declara com todos 'erres', 'esses' e 'eSseeMeeSses' que você é a mulher da vida dele!

Não tem Lei de Murphy neste negócio. As coisas simplesmente são. Com o tal sujeito interessante, a sujeita joga no lixo a espontaneidade e na carona o melhor de si. Se deixa dominar pela tensão da expectativa e mete os pés mão nos artifícios que passam a comandar a cena. Não é ela, ou é a sua parte de que menos gosta quando se olha no espelho da verdade e sente certa repulsa - ou ri de si mesma - quando se vê. E pensa que não fosse a bebidinha que embalou o encontro chegaria em casa procurando um relaxante muscular - contra as contraturas fruto das horas sobre um palco que, em sã consciência, se negaria a subir. Passam os anos, não adianta, não se livra da ascensão e morte que representam aquelas estreias e declínios súbitos da estrela. É que ali não foi possível simplesmente ser.
Quem (se) aguenta? Ou quem se encanta?




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