domingo, 22 de abril de 2012

Dos outros: REFUGO - Jader Marques







Fotografia: Henri Cartier-Bresson





Por identitário, têm que estar aqui as reflexões de Jader Marques através das ponderações de Zygmunt Bauman, em que Jader contrapõe alguns ditos e não ditos da vida moderna, dizendo da cegueira ao 'refugo' - um lixo moral que se produz conjunto e antes mesmo do lixo material. 




REFUGO  ( Jader Marques*)
                                    

Todo o dia, toda hora, a cada minuto de nossas vidas modernas líquidas, estamos a consumir o novo e, conseqüentemente, a produzir mais e mais lixo, decorrente do descarte do que não mais tem utilidade. A vida moderna, baseada nesta contínua linha consumo/descarte, torna cada vez mais freqüente a inesperada e indesejável necessidade do convívio com o lixo, que se nos apresenta de maneira abrupta, desagradável, inoportuna.



O que fazer com aquilo que não tem serventia? O que fazer com aquilo que não tem utilidade? O que fazer com aquilo que não tem valor? O que fazer com aquilo que não está mais no mercado?



Zygmunt Bauman, no indispensável livro “Vidas Desperdiçadas”, destaca estas questões fundamentais. Não vou fazer aqui um relato da obra ou das impressões obtidas com a (fantástica) experiência da sua (re)leitura (terminada poucos dias antes deste texto). Para tanto, leiam o livro.

Fazendo isto, verão que lá consta um trecho com a seguinte escrita: “A história em que e com que crescemos não tem interesse no lixo. Segundo esta história, o que interessa é o produto, não o refugo. Dois tipos de caminhão deixam todo o dia o pátio da fábrica - um deles vai para os depósitos de mercadoria e para as lojas de departamentos, o outro, para os depósitos de lixo, A história com que crescemos nos treinou pra observarmos (contarmos, valorizarmos, cuidarmos) tão-somente o primeiro tipo de caminhão. No segundo só pensamos nas ocasiões (felizmente ainda não cotidianas) em que uma avalanche de dejetos desce pela montanha de refugos e quebra as cercas destinadas a proteger nossos quintais. (...) Removemos os dejetos da maneira mais radical e efetiva: tornando-os invisíveis, por não olhá-los, e inimagináveis, por não pensarmos neles. Eles só nos preocupam quando as defesas elementares da rotina se rompem e as precauções falham...”

Refugo é tudo aquilo que não serve; é o que foi deixado de lado, porque não foi usado, porque foi usado e perdeu a serventia, porque sobrou, enfim, é tudo que tenha o lixo por destino. E não somos educados para nos importarmos com o lixo. Sabemos que ele é inevitável, que é a sobra de tudo o que consumimos ou o que não conseguimos consumir, porque pereceu, porque envelheceu, porque saiu da moda. Não há luxo no lixo.

Tudo isto parece muito natural. Nada de extraordinário foi dito. Desprezamos o que não tem utilidade, em detrimento daquilo que se afigura importante para o momento. Fazemos isto com os alimentos, com as máquinas, com as roupas, com as informações...

Mas e o ser humano?

Será possível imaginarmos que haja seres humanos classificados como refugos, porque não têm serventia, porque perderam a utilidade, porque não produzem, porque geram despesas, porque se apresentam, tal como o lixo, desajeitados, fétidos, inúteis, amontoados nos lugares mais afastados, como sobra de comida, sobra de produção, como o excedente?

O preso é o lixo. A penitenciária é o depósito. O idoso é o lixo. O asilo é o depósito. O louco é o lixo. O manicômio é o depósito. O pobre é o lixo. O gueto é o depósito. Tantas vezes, passamos por estes seres humanos que viraram dejetos, vítimas da exclusão, da falta de espaço, da falta de sorte, da falta de assistência e, de passagem, não enxergamos o dejeto na sua condição de refugo. Não queremos ver lixo. Desviamos o olhar, para não ver o que de feio, de sujo, de repugnante tem o dejeto. O refugo não tem visibilidade, porque não é agradável olhá-lo.

O problema é que o vento às vezes muda de direção e o cheiro de podre invade a nossa sala de estar; o lixo derrama e invade a grama aparada do nosso quintal; a montanha de lixo entra na nossa vida.

A partir daí, somos levados a um pensamento individualista, não-solidário, de auto-preservação por negação do problema. O problema do lixo humano não é nosso, porque o lixo não pertence a alguém. Afinal, o lixo não tem dono. É o estado que deve recolher o lixo. O estado deve manter o lixo no lugar apropriado, preservando as pessoas limpas de toda a sujeita, longe das moscas, das larvas, de toda a podridão.

Para finalizar, Bauman: “Os problemas do refugo (humano) e da remoção do lixo (humano) pesam ainda mais fortemente sobre a moderna e consumista cultura da individualização. Eles saturam os setores mais importantes da vida social, tendem a dominar estratégias de vida e a revestir as atividades mais importantes da existência, estimulando-as a gerar seu próprio refugo sui generis: relacionamentos humanos natimortos, inadequados, inválidos ou inviáveis, nascidos com a marca do descarte iminente”.

Pense no lixo que você produz, que você consome e que você descarta!
JM



* Jader Marques  é advogado e professor (Porto Alegre, RS) 


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Um comentário:

  1. Tem uma coisa que penso sobre o ser humano, diz quando se sita "Errar é humano" Mas eu diria "Humano é arrumar uma desculpa para o seu erro".
    Muitíssimo interessante e relevante o seu texto, simplesmente adorei, adorei, adorei de verdade mesmo!!!

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