sábado, 9 de abril de 2011

Daquilo que nos constitui









Luíza era uma empregada que tínhamos lá na chácara, durante parte de minha infância e adolescência. Mulher de quarenta e poucos anos, uma típica gaúcha do interior do interior do Estado, nascida, criada e constituída daquilo que era considerado por seus afins o elemento essencial à formação de um indivíduo na face da terra: comida! - suficiente pra fazer vingar e aprender a ‘se virar’, [sobre]vivendo. De certo que foi constituída de algum afeto também, não só pela forma que a nós tratava, mas também pela prole de incontáveis filhos a visitavam de tempos em tempos, o que me faz supor soube transmitir o afeto recebido de seus pais. Luíza tinha uma voz máscula e retraída, em perfeita adequação à sua espécie de timidez - talvez fruto da sequela física que delineava um rosto dotado de um olho só. Mas nem por isso nos privava de suas risadas. Via-se riso por todo aquele corpo. É que quando ria, fazia correr uma mão à boca, como se o riso tivesse de ser escondido, como se fosse pecado zoar, e que gargalhar representasse se dar ao ‘desfrute’, ainda que não se soubesse do quê. A outra [mão], enquanto ria, rasgava o espaço, bailava solta ao redor daquele corpo de biotipo em forma de maçã. Seu corpo ria, ria inteiro, pois era o que se via quando a barriga, protuberante e mole, por ter sido criadouro de tantos rebentos, balançava-se toda a cada gracejo que se fizesse com ela ou ela conosco. Luíza tinha todos os filhos criados, o que representava tê-los entregue à sorte do mundo; salvo a caçula, que reproduzia a timidez da mãe e outras formas e trejeitos seus, que mais lembrava um caso de espelhamento. A menina, para a mãe, se chamava ‘Sirvigina’, ainda que Sílvia Regina fosse seu nome de registro civil, e ainda que ‘sirvigina’ representasse o retrato de seus limites culturais - mas não menos gente que aqueles que classificam as gentes como sub ou sobre-humanos. Hoje um amigo me fez lembrar de Luíza, e com isto pensar na sorte de ter conhecido tantos mundos no microcosmos, porém, para mim, gigantesco universo de possibilidades e observações, em que cresci. Luíza fez lembrar que amanhã, mais uma vez, vou agradecer a meus pais, por tudo.



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2 comentários:

  1. A oportunidade de alargar os horizontes, o estimulo, a abertura no olhar e no sentir, nos liberam a novas experiências, novos aprendizados, formando o amalgama que nos constitui. Infelizmente não é uma dádiva universal. Dê mesmo um grande abraço em teus pais.

    bjo

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  2. Sempre me vi como um COSMOPOLITA essa poesia me lembra o quanto andei por esse NOSSO brasil, ADORO SUAS POESIAS. e CLARICE É O MÁXIMO.

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