sábado, 11 de setembro de 2010

Validando o cotidiano

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Embora poucas situações me causem surpresa, muitas despertam minha atenção. Embora, ainda, tenha a alma inquieta e veloz, alguns fatos ou circunstâncias do cotidiano, desprezíveis pela maioria, são  capazes de me fazer fixar, por que não é raro o objeto da observação despertar uma corrente involuntária de percepções gratificantes.

Meu cotidiano, os atos e percursos que repito todo dia, deles não deixo escapar os detalhes. Gosto do banho que desperta, dos cremes e da olhadela no espelho para ver se está tudo em ordem. Do café da manhã, que pode ser café com leite ou toddy com leite, leite, muito leite, pão preto ou torrada com manteiga, ou uma banana às pressas. Enquanto isso, escuto as notícias sobre o trânsito e previsão do tempo, pois se é dia de óculos de sol ou é dia de sombrinha, posso escolher entre a jaqueta ou a blusa de alcinhas.

Chaves na mão, bolsa, celular e pasta, esperar impaciente o elevador para logo entrar contato com a luz do dia. Rua, início do dia deliciosamente frenético com promessa de prazeres por conta das expectativas de realizações. Sempre têm realizações. Gosto do que faço e por onde e para onde vou - das minhas escolhas.
Entrar no carro e ligar o som com música dance em volume alto suficiente para entrar no clima da  promessa.

A cada sinal fechado ao longo do percurso, chama a atenção as copas e enormes raízes aparentes e retorcidas das árvores que se espalham  pelas margens do arroio Dilúvio na Avenida Ipiranga.


Um especial olhar às inusitadas palmeiras da Califórnia, altíssimas, plantadas sobre a ponte entre as Avenidas Azenha e João Pessoa. Palmeiras sobre uma ponte? Não é incrível? Incrível mesmo talvez seja conseguir enxergar isso, pois muitos que por ali passam todos os dias nem veem aquela maravilha da natureza conjugada com uma linda obra de engenharia, idealizada por algum humano bacana.

E o florista na esquina da Borges, Eduardo, de quem às vezes compro rosas, para ele sempre acho um tempinho para falar de flores e outras coisas da vida. O tempo do semáforo naquela esquina é além da conta. Aproveito para fazer um afago através de falas ou do simples aceno que dou para aquele nordestino simpático, que veio para Porto Alegre apostar a sorte na vida. Mal sabe ele que a sorte é minha, pois a sua aposta colore o meu caminho.

Nas quadras que circundam o local do meu trabalho, tem o manobrista que por ali trabalha, o Gordo, e se o dia não é de sol, se vira vendendo guarda-chuvas. Dou bom dia àquele moço, que sempre me sorri e cumprimenta simpático, independente da meteorologia. 

E tem o moço do estacionamento, o Bernardo, um devorador de livros, mas que encontra nos bons modos a razão para erguer a cabeça e cumprimentar educado, fazendo algum comentário ou brincadeira, para logo em seguida mergulhar cegamente naquela leitura que me dá certa inveja - ler logo de manhã é privilégio de poucos.

A caminho do prédio, atravessando a rua, ainda tem o morador de rua, o Índio - ao menos assim é conhecido por todos, embora já tenha me dito se chamar Alex. Alcoolista incorrigível por conta da falta de compreensão de se tratar de uma mazela física, passa seus dias ali, distribuindo cumprimentos e recebendo alguma ajuda dos moradores ou trabalhores locais. Independente do seu estado etílico, quando me aproximo saúda com um "bom dia minha grande amiga, esta é a 'malhor' amiga!". Se não faz assim, então canta uma música, de que descofio seja a única que conheça. Sorrio e retribuo a saudação.

No saguão do prédio público onde trabalho, está o Vieira, do serviço de segurança. Um sujeito que com seu jeito ímpar torna a chegada no trabalho uma festa. Vai logo cumprimentando a todos com um sorriso contagiante, e aos que sabem receber carinho, estende a mão e toca. A minha mão, se não estiver carregada de processos, deixo beijar, pois não tem preço a delicadeza e gentileza daquele ser, um gentleman. Dia destes, aliás, disse que falta pouco para se aposentar. Pensei: minhas manhãs não serão as mesmas quando este dia chegar, mas por hora, para ele, vou tratar de retribuir os carinhos que fazem toda a diferença nos dias aloprados atuais.
Tem muito mais, mas assim começo o dia, que entre produções e projetos, realizações, sonhos e ideias, vou validando a vida com toda sorte de olhares.



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9 comentários:

  1. Dia desses ouvi mais uma daquelas frases que tentam definir a vida (sem se dar conta da impossibilidade)*, mas que me marcou: "a vida é uma sucessão de relações". Com que bela sucessão começa o teu dia ! Fiquei com uma (doce e branca) inveja.

    Beijo.

    NW

    * Deixo aqui a letra de uma canção do meu ídolo Paulinho da Viola:

    Solução de Vida (Molejo Dialético)

    Acreditei na paixão
    E a paixão me mostrou
    Que eu não tinha razão

    Acreditei na razão
    E a razão se mostrou
    Uma grande ilusão

    Acreditei no destino
    E deixei-me levar
    E no fim
    Tudo é sonho perdido
    Só desatino, dores demais

    Hoje com meus desenganos
    Me ponho a pensar
    Que na vida, paixão e razão,
    Ambas têm seu lugar

    E por isso eu lhe digo
    Que não é preciso
    Buscar solução para a vida
    Ela não é uma equação
    Não tem que ser resolvida

    A vida, portanto, meu caro,
    Não tem solução

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  2. Que delícia este texto...fiquei maravilhada e muito emocionada com estas palavras ..minha querida amiga.

    Bjos.

    RÔ Monser

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  3. Jan ! Adorei! Achei o máximo, consegui "viajar" nas tuas palavras e visualizar muitas cenas identicas ao meu cotidiano e igualmente restou validado.
    Sobre o gentil rapaz do estacionamento, me chamou a atenção tb estes dias a sua inteligencia, saudei ele pela tarde com um "hello" com o que ele respondeu em fraces! achei o maximo!
    O Vieira vai se aposentar?? Nossa! Nossas manhas nao mais serao as mesmas !

    Bjão e jamais deixe de escrever.
    Monique.

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  4. Maria, só hoje consegui voltar ao blog...o cotiano se faz presente e muitas vezes nos perdemos, esquecendo da validá-lo.
    Amei as postagens e continuo te seguindo.
    Meu carinho
    Alie

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  5. Caraca velhinha... (risos) Sempre soube que você escrevia bem, mas está melhor ainda. Viraste vinho, querida?! muito muito bem escrito!
    "E tem o moço do estacionamento, um devorador de livros, MAS QUE ENCONTRA NOS BONS MODOS A RAZÃO PARA ERGUER A CABEÇA E CUMPRIMENTAR EDUCADO, fazendo algum comentário ou brincadeira..." . Essa colocação foi de uma felicidade ímpar! Amei, miga. Beijo Beijo, Mitzi

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  6. Bom dia Mary Jan,

    Amiga, me senti voltando no tempo. Um tempo em que me sentia exatamente assim quando me dirigia ao trabalho.
    Não tinha a ponte com coqueiros, mas tinha uma 116 que apesar dos atrasos.... me encantava.

    Sentia também inveja do “devorador de livros”.

    Recebia um “bom dia maninha”, todos os dias do “índio”, que assim chamas. Para mim, era “maninho” porque assim ele se dirigia a todos e sempre perguntava pelo “conterrâneo” que era o Amilton.

    Senti saudade do Vieira e surpresa ao saber que ele está se aposentando... Querido “amigo” que como vc bem refere recebia a todos (os eleitos) com carinho e simpatia num “doce beija mão” ou afago qualquer no braço.

    Ia esquecendo... tinha o Sadã lembra? O mendigo que, alienado, perambulava entre todos sem ver ninguém... Mas era “amigo” dos gatos que nteresseiramente “roubavam-lhe” comida quando ele não a partilhava de bom grado.

    E... finalmente... naquele tempo exista os amigos. Como era bom chegar e ouvir as novidades: fofocas, tristezas, relatos de festas ou amores que acometiam os participantes daquele circulo que depois virou circo.

    Só você para me fazer lembrar/lamentar e sentir novamente aquele estado de felicidade que na maioria das vezes não se percebe, mas que fica na memória como sol na pele.

    Releio o texto primoroso e torno a sentir as mesmas sensações.
    Saudade, mas acima de tudo felicidade... Eu, vivi...

    Beijo no coração,
    Véra.

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  7. Este comentário foi removido pelo autor.

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  8. Nossa mana-amiga..está cada vez mais maravilhoso e criativo este blog! Parabéns!.....não poderia passar em branco todo teu talento....
    Sabe, agora me lembrei de quando te falava: Tu tem que escrever um livro! E brincando te dizia: "Estórias de Mary Jane"....heheh....
    Fico feliz com vc, estou participando e vivenciando mais este momento na tua vida...afinal 30 anos de amizade não é pra qualquer um....
    Bjus querida...até mais!
    Ieda Nessy.

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  9. O Índio é demais!
    Cada vez que chegava no Foro ele alegrava demais o meu dia, gritando, sabe-se lá porque, NÃO ERA OURO, DOUTOR, e dando uma gargalhada de dar gosto de ouvir!

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