domingo, 26 de setembro de 2010

No meu ou no seu?

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Fotografia: Cade Martin




O som do gatilho fez apertar os olhos e contrair todos os músculos do corpo. O disparo que pensou ouvir não foi do tiro e sim de lembranças.

Depois de ter palestrado em um congresso sobre políticas públicas e esticado a noite com alguns dos congressistas, ele fechou a conta no bar e dirigiu-se ao carro para voltar ao hotel.

Antes de chegar no estacionamento, a visão que teve foi de Erínias. Caminhava sozinha naquela madrugada fria pela calçada, mal ajambrada, no melhor estilo fim de festa. Trocava os passos que eram vistos muito marcadamente através de uma minissaia, que ficava ainda mais mini quando medida a distância entre a bainha da saia e o limite do cano das botas de saltos altos. Um casaco jogado sobre um dos ombros, segurado apenas pelo indicador da mão direita, enquanto a outra mão carregava os restos daquela noite - uma taça, um cigarro aceso e um molho de chaves.

Sob a luz do poste pôde ver. A pele era muito branca, contrastava com os restos de um batom roxo quase negro, que mostravam sinais de uma boca que ele sentiu vontade - de ouvir falar. Provocou:

- Agora que jogou fora o cigarro, tenho melhor destino para esta taça quase vazia. Ou posso simplesmente oferecer uma carona? Isso dá direito à RG, CPF, além de uma ligação para a polícia para levantar meus antecedentes criminais, se isto a deixar mais segura.

Erínias perdeu o ritmo da malemolência etílica. E ao invés de tomar o último gole que ensaiava, colocou a mão na cintura, apoiando a taça. Da boca que mordeu o lábio inferior e contraiu um sorriso, ele ouviu:

- Não pensei que a noite estivesse só começando. No meu ou no seu? Perguntou ela, apontando com o olhar para os carros no estacionamento, já imaginando que isto renderia mais uma anotação em seu diário de bordo da vida.

Foram muito além de apenas uma anotação. Junto dela, ele escalou o Himalaia, frequentou andares de estacionamentos abandonados, elevadores, Ilha de Páscoa, escadarias, poltronas de cinema e bancos de carro, além de render a despedida das Ilhas Maldivas. Acumulou milhas, experimentou outras culinárias e colocou na nécessaire um tubo de picrato de butesin para as novidades sobre carpetes. Casou-se com aquela irreverente, apesar de que seu ritmo de vida o fazia avesso a casamento.

Em seguida conheceu cólica menstrual, mau humor matinal, disputa pelo jornal, queixas domésticas sobre a necessidade de preservação do instituto matrimonial. Empenhado, não no casamento, mas sim em suas atividades, as palestras se multiplicavam e seu endereço, embora casado, seguiu sendo algum quarto de hotel.

A rotina ganhou novos desafios. Além de Erínias, quis manter Lola, Natacha, Suelem e a(o) Marcela(o), sob o pretexto da confraria do vinho, do charuto, do cheff, do parafuso, e afins. Tiveram o primogênito, o do meio e a caçula, sempre um ardendo em febre, braço quebrado, sarampo, catapora, ou pedindo algum carinho quando ele visitava o endereço-depósito chamado lar. Além de ter enfrentado maus bocados com algumas das razões de existir as confrarias. Por tudo, Erínias não aguentou, aconselhou-se com a melhor amiga Themis e decidiu separar. O casamento foi parar na justiça.

Enquanto a guarda dos filhos e partilha de bens eram decididas por algum juiz, ele, na mesa de bar, procurava fragmentos do afeto. Não achou. Esmiuçando a lembrança mais afundo, encontrou os sinais de um roteiro que achou fosse seu. Mas não. Na verdade era escrito, dirigido e protagonizado por ela, plenejado cada detalhe do que deveria ser a vida a dois. No final daquela lembrança teve uma clara visão. Era Erínias, fantasiada de senhora de seu destino e armada com cacos de uma taça, com o que lhe decepou o dedo anular esquerdo.

Era um filme de sua memória. Nunca imaginou que da mira daquele revolver, empunhado por um assaltante adolescente que invadira o bar,  teria aquelas tantas respostas.

Retomou a consciência do assalto pelos gritos daquele moleque, ordenando que deitasse no chão.

Respiração ofegante, quando esperava finalmente receber o tiro fatal, acordou. As lembranças, o assalto, as respostas, tudo, eram cenas de um pesadelo de que acabava de despertar.

Meio atônito com os detalhes que pareceram tão reais, foi aos poucos organizando as ideias e sentiu a sensação estranha de estar vivo, na mão esquerda lá estava, intacto, o dedo anular.

Ainda deitado, sem lembrar ao certo na cama de quê hotel, olhou para o lado. Sobre o travesseiro o telefone ainda com a mensagem na tela, a que havia  recebido pouco antes de mergulhar no sono que lhe rendeu aquele 

“Diário de bordo: Conferência Internacional sobre Inclusão de Direitos da Mulher encerra domingo. Desta vez conseguirei ficar duas semanas no Brasil. Organize sua agenda e reserve o espumante. Merecemos, pois, pelas minhas contas, será a primeira vez nestes 10 anos que conseguiremos ficar mais de 10 dias juntos. Não parece ótimo? Pergunta: no meu ou no seu, hotel? Erínias."

Jogou o telefone sobre o travesseiro. Em um movimento lento, levantou o braço esquerdo e foi abrindo a mão para observar. Fixou os olhos no dedo anular e lembrou, então, do último pensamento antes de adormecer naquela noite: ...há 10 anos atrás ela quis construir, eu não. Agora, cansado de quartos de hotéis, ela se reinventou. Sem espaço para nós.



*Nota: Erínias (ou Eríneas): deusas gregas que personificavam a justiça punitiva ou vingativa.



2 comentários:

  1. Quero saber porque cargas d´água voce ainda nao escreveu um livro de crônicas. EStá esperando o que?
    bj Mitzi

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