domingo, 17 de abril de 2011

Por liberalidade





Assim como a primavera, eu me deixei cortar para vir mais forte.
                                                                             
                                                                                        [Clarice Lispector]



.

sábado, 9 de abril de 2011

Daquilo que nos constitui









Luíza era uma empregada que tínhamos lá na chácara, durante parte de minha infância e adolescência. Mulher de quarenta e poucos anos, uma típica gaúcha do interior do interior do Estado, nascida, criada e constituída daquilo que era considerado por seus afins o elemento essencial à formação de um indivíduo na face da terra: comida! - suficiente pra fazer vingar e aprender a ‘se virar’, [sobre]vivendo. De certo que foi constituída de algum afeto também, não só pela forma que a nós tratava, mas também pela prole de incontáveis filhos a visitavam de tempos em tempos, o que me faz supor soube transmitir o afeto recebido de seus pais. Luíza tinha uma voz máscula e retraída, em perfeita adequação à sua espécie de timidez - talvez fruto da sequela física que delineava um rosto dotado de um olho só. Mas nem por isso nos privava de suas risadas. Via-se riso por todo aquele corpo. É que quando ria, fazia correr uma mão à boca, como se o riso tivesse de ser escondido, como se fosse pecado zoar, e que gargalhar representasse se dar ao ‘desfrute’, ainda que não se soubesse do quê. A outra [mão], enquanto ria, rasgava o espaço, bailava solta ao redor daquele corpo de biotipo em forma de maçã. Seu corpo ria, ria inteiro, pois era o que se via quando a barriga, protuberante e mole, por ter sido criadouro de tantos rebentos, balançava-se toda a cada gracejo que se fizesse com ela ou ela conosco. Luíza tinha todos os filhos criados, o que representava tê-los entregue à sorte do mundo; salvo a caçula, que reproduzia a timidez da mãe e outras formas e trejeitos seus, que mais lembrava um caso de espelhamento. A menina, para a mãe, se chamava ‘Sirvigina’, ainda que Sílvia Regina fosse seu nome de registro civil, e ainda que ‘sirvigina’ representasse o retrato de seus limites culturais - mas não menos gente que aqueles que classificam as gentes como sub ou sobre-humanos. Hoje um amigo me fez lembrar de Luíza, e com isto pensar na sorte de ter conhecido tantos mundos no microcosmos, porém, para mim, gigantesco universo de possibilidades e observações, em que cresci. Luíza fez lembrar que amanhã, mais uma vez, vou agradecer a meus pais, por tudo.



.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

De tão lindo, me doi - O Haver



Da boca do poeta



        O Haver
          
                              Vinícius de Moraes, 16.04.1962


Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
Essa intimidade perfeita com o silêncio
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo
- Perdoai-os! porque eles não têm culpa de ter nascido...

Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo
Essa mão que tateia antes de ter, esse medo
De ferir tocando, essa forte mão de homem
Cheia de mansidão para com tudo quanto existe.

Resta essa imobilidade, essa economia de gestos
Essa inércia cada vez maior diante do Infinito
Essa gagueira infantil de quem quer balbuciar o inexprimível
Essa irredutível recusa à poesia não vivida.

Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento
Da matéria em repouso, essa angústia da simultaneidade
Do tempo, essa lenta decomposição poética
Em busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinicius.

Resta esse coração queimando como um círio
Numa catedral em ruínas, essa tristeza
Diante do cotidiano; ou essa súbita alegria
Ao ouvir passos na noite que se perdem sem memória.

Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera segue em face da injustiça do mal-entendido
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa
Piedade de sua inútil poesia e sua força inútil.

Resta esse sentimento da infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem para comprometer-se sem necessidade.

Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser
E ao mesmo tempo esse desejo de servir, essa
Contemporaneidade com o amanhã dos que não têm ontem nem hoje.

Resta essa faculdade incoercível de sonhar
De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la tal como é, e essa visão
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante

E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.

Resta essa obstinação em não fugir do labirinto
Na busca desesperada de uma porta quem sabe inexistente
E essa coragem indizível diante do grande medo
E ao mesmo tempo esse terrível medo de renascer dentro da treva.

Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem história
Resta essa pobreza intrínseca, esse orgullho, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do seu reino.

Resta essa fidelidade à mulher e ao seu tormento
Esse abandono sem remissão à sua voragem insaciável
Resta esse eterno morrer na cruz de seus braços
E esse eterno ressuscitar para ser recrucificado.

Resta esse diálogo cotidiano com a morte, esse fascínio
Pelo momento a vir, quando, emocionada
Ela virá me abrir a porta como uma velha amante
Sem saber que é a minha mais nova namorada.


.